INTRODUÇÃO
O revisionismo era e ainda é necessário. A história era muito oficial, defendia sempre os vencedores e vivia submersa no triunfalismo [...] a história vinha sendo confundida com tradição. Esta tem sempre o propósito de controlar indivíduos, sociedade, inspirar classes. É um conceito inteiramente corrompido e usado para fins de manutenção dos privilégios da classe dominante. (RODRIGUES, 1986, p. 142, grifo nosso).
Esse livro é uma tentativa de explicar o processo histórico que resultou na anexação do Acre ao Brasil. Para tanto, foi necessário uma releitura das principais fontes históricas sobre o assunto. O caráter revisionista dele tem a ver com a crítica que faz à narrativa epopeica[1] divulgada pela história oficial que, por sua vez, não tem qualquer responsabilidade com a representação fiel dos fatos. Isso porque assumiu a missão de inventar um passado inaugural glorioso capaz de provocar orgulho na presente geração e nas futuras. Portanto, essa obra não guarda o compromisso de preservar as tradições e os abusos da história perpetuados pelo status quo acriano[2] e pelas políticas simbólicas adotadas pelo Estado com o fim de internalizar no acriano uma visão comemorativa do Acre.
O objetivo aqui foi produzir um conhecimento mais sincero e honesto da formação da fronteira sul ocidental amazônica brasileira. Como é sabido, a verdade histórica é inalcançável, pois nunca o fato será representado tal como aconteceu. No entanto, a disposição em buscá-la ainda é o melhor antídoto contra as utopias e mitos. Mesmo tendo plena consciência de não a termos alcançado, acreditamos o mérito desse livro foi romper com a monossemia da história oficial, provocando nela fissuras, por meio das quais, outras histórias menos vaidosas, dentre as quais essa que será apresentada, possam surgir.
Acreditamos que a nacionalização do Acre deve ser estudada sob um ponto de vista multifocal. Isso porque a interpretação ufanista se limita a explicá-lo em função da pretensa grandiosidade do personagem Plácido de Castro, de seu patriotismo e dos “eventos” militares liderados por ele conhecidos como “Revolução Acriana”. Essa explicação deficitária é típica da análise episódica, que enxerga apenas o acontecimento em si, sem relacioná-lo às forças conjunturais e estruturais que lhe deram origem. Esse livro não adota essa escala de observação, preferimos abordar o assunto de modo tridimensional, dividindo-o em três fases, a saber: a fase invasiva, a fase militar e a fase diplomática.
As três fases não são tratadas aqui como acontecimentos cronologicamente sequenciados, como uma “evolução histórica”, como se a segunda fosse a continuidade da primeira, e a terceira da segunda. Cada etapa é vista como um “processo” diferenciado, que tem sua duração, sua espacialidade e ritmo próprio. No entanto, elas guardam certa relação de superposição, de simultaneidade e de influência mútua que dificultam a percepção da singularidade de cada uma delas.
A duração da primeira fase é mais longa que a das outras duas, na medida a região continuou atraindo migrantes até o fim do surto da borracha, na segunda metade da década de 1910. A segunda fase também não coincide com a da terceira, uma vez que os conflitos armados entre peruanos e brasileiros continuaram, mesmo após a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903). Já a terceira fase é anterior às duas primeiras, visto que as negociações fronteiriças sobre a Amazônia iniciaram tão logo as independências do Brasil, Peru e Bolívia foram proclamadas.
As três fases também se diferenciam no plano geográfico. A história da primeira não pode ser contada sem referência ao nordeste brasileiro, de onde migrou a maior parte daqueles que viriam a ser “os primeiros acrianos”. A história da segunda não pode deixar de mencionar Manaus, de onde a Questão Acriana foi fomentada e financiada. Já a história da terceira está mais focada na então capital do Brasil, Rio de Janeiro, sede do Itamarati.
Por conta desse enfoque, cada fase será tratada em um capítulo à parte. No primeiro, estudamos a penetração brasileira em terras localizadas abaixo da linha Javari-Madeira ocorrida no último quartel do século XIX. É chamada de “fase invasiva” pelo fato de os “bandeirantes” nordestinos terem colonizado território que não pertencia legalmente ao Brasil. Aquelas terras, originalmente pertencentes ao Vice-Reino espanhol, tinham como prováveis herdeiros a Bolívia e/ou o Peru. E, na segunda metade do século XIX, essas duas repúblicas ainda não haviam chegado a um consenso sobre a totalidade de suas fronteiras. Além do mais, o território não estava desabitado, inúmeras nações indígenas moravam ali, portanto, a invasão de território alheio foi um fato.
No segundo capítulo, tratamos da fase militar, caracterizada pelos conflitos armados entre brasileiros, bolivianos e peruanos. Por conta da dificuldade que tivemos no acesso às fontes primárias sobre as disputas entre brasileiros e peruanos na região do Juruá, limitamos nossa análise aos conflitos armados entre brasileiros e bolivianos na região do Acre-Purus.
Como veremos, essa foi a fase de duração mais curta e a de menor importância, no entanto, por ter um ritmo mais acelerado e por conter episódios dramáticos, foi a etapa que mais ganhou notoriedade e se tornou a preferida dos historiadores acomodados com a superficialidade dos "eventos" e com o “ídolo das origens” (BLOCH, 2001, p. 56).
No terceiro capítulo, analisamos o acordo com o Bolivian Syndicate (1901), o Tratado de Petrópolis (1903) e o Tratado Brasil-Peru (1909). Ao nosso ver, o desfecho da Questão Acriana só começou quando a diplomacia brasileira obteve a neutralidade dos EUA, que até então estavam inclinados aos reclames bolivianos. Isso por dois motivos: primeiro, por causa dos muitos financistas norte-americanos envolvidos no Bolivian Syndicate; segundo, porque o Brasil até então se negava ao alinhamento imposto pela Doutrina Monroe.
Enfim, tanto esse livro quanto o já publicado Formação da Sociedade Econômica Acriana não deixam de ser uma provocação aos promotores da “acrianidade”. O ufanismo acriano está baseado em uma história “sacralizada” e a nossa ingrata missão foi “profaná-la”. Como afirma Agamben (2007, p. 66), existe “um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado”. “Tocar” na epopeia acriana talvez tenha sido a maior contribuição desses dois livros.
Sabemos que profanar o sagrado é uma atividade arriscada. Aquele que o intenta pode ser visto como herege pela cúpula eclesiástica e ter a “fogueira” como destino. Antes que isso aconteça, já me antecipo em dizer que esse trabalho não pretende esgotar o assunto. Eu só “quis mostrar, num livro ao alcance de todo mundo, que também na nossa história os heróis e os grandes feitos não são heróis e grandes senão na medida em que acordam com os interesses das classes dirigentes, em cujo benefício se faz a história oficial” (PRADO JUNIOR, 1997, p. 8).
BOA LEITURA!
Nenhum comentário:
Postar um comentário